O corpo saúda o _espaço de fora_

Para comemorar o Dia Internacional da Dança, 29 de abril, UFG acolheu etapa itinerante do Festival Horizontes Urbanos, com performance, oficina e _notações_ da bailarina Dudude Herrmann

Patrícia da Veiga

Fotos: Carlos Siqueira


“Olha lá a mulher puxando o carrinho”, alertou uma moça* com uniforme de guarda, em frente ao prédio do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), na Avenida Goiás, centro de Goiânia. Ela e mais três pessoas avistavam, curiosas, uma movimentação que vinha do canteiro central. A mulher mencionada pela guarda conversava só, caminhava sem rumo, deitava no chão, rodopiava, misturava-se aos transeuntes, procurava tocar e se espalhar por diversas partes daquele espaço.

O carrinho que a mulher puxava era daqueles que costumamos usar em dias de feira, contendo objetos avulsos como notas miúdas de dinheiro, carteira de cigarro, sacola plástica, óculos de sol, catavento brilhante e flores artificiais. A mulher vestia-se com um macacão surrado, carregando ainda uma caixa de papelão encapada com folhas de jornal e uma faixa de tecido. Na tampa da caixa, uma manchete anunciava “a praça pulsa”. Já a faixa se encarregava de dizer: “Poéticas de um andarilho/A escrita do movimento no espaço de fora”.

Ela pendurou a faixa nos galhos de uma árvore e deixou a caixa quase na borda do meio fio, por vários minutos. Em uma de suas caminhadas, foi até o encontro da Av. Goiás com a Rua 3. Ao passar por um senhor sentado em um dos bancos do canteiro central, a mulher recebeu olhares intrigados e um diagnóstico: – Uma pessoa estranha. Parece um quadro de 'frenopatia', quase uma esquizofrenia. Mas o que me intriga é que o sorriso dela é tranquilo. E quando ela fecha os olhos demonstra muito equilíbrio. É uma pessoa saudável, mas que não se enquadra – disse o homem, emocionado, sobretudo, com o catavento que de longe se movimentava (e brilhava) só com a ajuda do ar.

 

O 'espaço de fora' também é dança, na performance de Dudude Herrman

 

Um ciclista, parado ao lado do Coreto, também ficou curioso. E não se conteve: atravessou a rua e logo foi ao encontro da mulher, perguntar-lhe do que se tratava. “Ela disse que também não sabe. Mas bem que podia ser um movimento para mudar as coisas. Precisamos de mais manifestações nas ruas”, comentou o moço.

Um carro que atravessava a Rua 82 e descia a Av. Goiás, sentido Bairro Popular, parou diante do semáforo. De dentro do veículo, uma música com volume alto entoou a dança da mulher, disposta no 'espaço de fora' como se estivesse à deriva. Ela se apoiou na placa de sinalização, em pessoas, e novamente puxou o carrinho, como se todos os seus movimentos fossem dança. “Ela vai ficar aí só se mexendo?”, questionou uma mãe que foi com a filha ao médico e, na volta, deparou-se com a cena. “É curioso”, completou a filha, com um sorriso escancarado. Na porta do prédio do INSS, um carro tentou estacionar em lugar proibido. O alarme de uma motocicleta disparou, desviando os olhares.

Em meio a uma rotina que não para, a mulher que chamou a atenção dessas pessoas, e talvez de mais algumas não notadas, foi Dudude Herrmann. A andarilha de 46 anos, bailarina, coreógrafa, mineira, entre outras atribuições, na última semana ocupou Brasília e Goiânia para dançar e lançar o livro Cadernos de notações, dentro da programação da etapa itinerante da mostra Horizontes Urbanos. Dudude também visitou a UFG, a convite dos professores da licenciatura em Dança e Artes Cênicas, ministrando oficina e participando de um intenso diálogo com estudantes nos dias 26 e 27/4.

A proposta de Dudude, segundo ela própria, é “ampliar o entendimento da dança”. Além de causar estranhamento, seu improviso nas ruas também tem o objetivo de reconhecer os movimentos mais diversos que compõem o espaço urbano e estão diluídos nos corpos. “Tudo é dança, em tudo enxergo a dança”, comentou, na última sexta-feira (27/4), durante o lançamento de seu livro em Goiânia, no auditório da Escola de Música e Artes Cênicas (Emac). Nada mais apropriado para celebrar o direito humano de dançar.


Estudantes do curso de licenciatura em Dança também improvisaram com Dudude Herrmann, no canteiro central da Avenida Goiás

 

Em busca de uma essência humana que fuja do virtuosismo, das disciplinas e dos enquadramentos, sem a preocupação de nomear a dança ou qualquer forma de expressão de sentimentos e sentidos, Dudude começou a pesquisar o movimento do ‘espaço de fora’ na Praça Santa Tereza, em Belo Horizonte, em 2003. Crianças, pássaros, formigas, taxistas e jardineiros foram suas companhias mais recorrentes para a elaboração de uma metodologia de trabalho que prioriza o momento, a percepção e o improviso. “Para improvisar, é preciso estar muito atento. Foi então que percebi que quem mais me notava eram os insetos”, brincou.

Mais adiante, ela percorreu outras praças, concebendo que “qualquer vazio ou qualquer espacinho com mais de três metros é praça”. Sua compreensão foi de que todas as formas de interação com o mundo seriam a sua própria dança. Essa foi, talvez, a lição mais preciosa para estudantes de Artes e Dança que puderam acompanhar a estada de Dudude em Goiânia.

O resultado de sua pesquisa lhe rendeu, além dos cinco cadernos de observações, ou de “notações”, transformados em livro, um “uniforme” nunca lavado. “Chamo de uniforme aquele macacão encardido, porque quero ser como as outras pessoas”, justificou. Apesar de provocar estranhamentos, sua tentativa é de parecer sutil, de incorporar a transeunte a tantas pessoas que vagam. Um “exercício de lucidez”.

A performance de Dudude Herrmann e a mostra Horizontes Urbanos integraram as comemorações do Dia Internacional da Dança (29/4), instituído pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) desde 1982, e lembrado na UFG pelos cursos de licenciatura em Dança e Artes Cênicas. A programação também foi composta pela pré-estreia do espetáculo MADAM, do grupo NEKA Poéticas Corporais, no dia 25/4, no anfiteatro da Emac; com a realização de um encontro do Fórum Goiano de Dança, na sexta-feira (27/4), pela manhã, na Faculdade de Educação Física (FEF); e com uma tarde de improviso do grupo Por quá?, intitulada “Por Acaso”, agendada para a tarde de sábado (28/4), na Rua 3, centro, em frente à Fábrica Cultura Coletiva.

 

*Nota: A reportagem abordou as pessoas na Avenida Goiás com a seguinte pergunta: “O que está acontecendo aqui?”. Para garantir-lhes a liberdade de falar, não houve identificação. Apenas anotou, ou "notou", o que conseguiu escutar.

Fonte: Ascom/UFG

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